quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

A mulher que fumava

Não sei explicar em que dia isso começou. Só sei que eu estava na minha janela, olhando o céu, a luz, chorando para aquela neblina toda, ou o que quer que seja, mas olhando. Olhando além da janela. Além do peso material do concreto a me puxar para a realidade. Quando vi. Assim, sem mais nem menos. De repente, vi. Ela.Cabelos presos de um jeito engraçado que eu não sei explicar direito. A franja, torta numa perfeição imensa, caindo sobre os olhos, que eu não vi. Mas deviam ser negros. Negros pra disfarçar a profundidade à flor da pele. A profundidade que me feria sem nem me tocar. Ela sempre estava lá quando eu olhava. Ou eu olhava só para encontrá-la, perplexa, com os cotovelos apoiados no beiral da sacada fria. Depois, calmamente, quase em um estado estranho de lentidão forçada, ela alcançava o maço de cigarros em algum lugar que eu não sei dizer certo qual é, acendia um com o fósforo, e ficava lá. Encostada na parede branca, cheia de marcas e dores de outras pessoas, marcas e dores que ela pendurava, vez em quando, para observar em quanto fumava um dos seus cigarros. Nunca a vi com ninguém. A não ser com ela mesma, o que, sinceramente, acho que já bastava. Ela pesava inteirinha. Adormeci várias vezes com o peso dos seus cílios sobre meus olhos. Mas era leveza também. Uma leveza dolorida. Uma leveza quando se quer o abraço forte e o beijo que arde. Brisa marinha na avenida central da paulicéia desvairada. Deixei de sair por alguns dias à espera dela. A espera do não-sei-o-que que sempre me faz esperar mais do que posso. Que sempre me faz perder livros e amores dentre as estantes do meu quarto. A espera que me faz deitar sobre alguém e só ser lençol. Na verdade, não sei se foram dias. Anos, quem sabe. Talvez tenham sido só semanas. As nossas semanas. Nossas, pra mim. Da solidão, pra ela. Eu a olhava numa euforia perplexa. As vezes, por trás das cortinas do meu apartamento que tinha cheiro de mofo aconchegante, as vezes, sem pudores, encarava-a na esperança do olhar recíproco que só chegou até mim uma vez.Uma só vez que valeu por todos os desejos de sorrisos e olhares e mordidas e beijos sem fim e outonos o ano todo e roupas no chão e chaleiras apitando e vitrolas tocando no meio da sala e cortinas arrebentando e lençóis se enrolando pelas nossas pernas emergentes.Eu estava lá, sentado na cadeira de plástico branca, com um caderno velho no colo, cheio de sentimentos e quinquilharias, tentando escrever mais sentimentos e quinquilharias sem deixar virar sentimento-quinquilharia -Porque esses só são bons separados. O céu estava num tom vermelho-púrpura, me fazendo querer tocá-lo, lambê-lo, cheirá-lo. Dançar naquele céu. Morrer naquele céu. O céu me doía em cada fragmento de escuridão. Levantei-me e fui preparar o café. Fiquei sentado no chão frio da cozinha, observando o amontoado de paixões e copos sujos que se acumulavam, pouco a pouco, em mim. O cheiro do café começou a invadir os meus pensamentos. Estava pronto. Coloquei tudo na caneca e segui até a minha sacada. A minha sacada de frente pra sacada dela. A minha realidade de frente para o sonho dela. A minha loucura se entendendo com a desordem dela. O suposto toque das mãos dela, nela, pondo-me em pedaços. Quando me encostei sobre o beiral da sacada, sobre o beiral de mim, ela estava lá. Meu coração era uma engrenagem em quebrante silencioso. Ela estava lá. Do mesmo jeito. Com os cabelos presos do jeito engraçado, a camiseta branca, que, de tão larga deixava um dos ombros magros a mostra e uma calcinha, que, assim, de onde eu via, parecia também branca. Ela parecia ter saído de um quadro surrealista pintado pelas minhas mãos. Era toda sonho. Era toda poesia. Poesia marginal. Poesia de grito. Do meu grito. Ela acendeu um cigarro – igual a tantos outros que já havia acendido antes – E, assim que terminou de dar a primeira tragada, no momento exato em que sua franja caiu sobre os olhos, sobre os dela, sobre os meus, ela ergueu o olhar. Erguer o olhar é diferente de erguer os olhos. E ela ergueu o olhar. Pra mim. Me entregou a profundidade dentro das mãos em forma de concha. Eu espiei um pouquinho. Mas ela abriu de uma vez, e aquilo se perdeu nela. Se perdeu em mim. Me perdi em você, céu meu.Nos olhamos. E, antes que o segundo trago viesse a tona, tive a impressão de a ver dando um leve sorriso. Um sorriso com os olhos. Um sorriso com o corpo todo. Depois disso, apagou o cigarro quase inteiro no copo que fazia o papel de cinzeiro no roteiro improvisado do nosso filme barato, virou-se de costas, fechou as cortinas escuras, e entrou. Nunca mais a vi. Acordo todos os dias cedo. Acordo no meio da noite. Não consigo dormir. Durmo. Acordo. Perco o sono. Perco-me nela. Perco-me em mim. Perco-me entre as muitas janelas. Bebo whisky sem gelo. Cheiro algumas carreiras sobre a cadeira velha de plástico da sacada. Fumo um cigarro. Fumo outro. Choro um pouco. Acendo outro cigarro. Olho para a janela dela. Nada. Ela nunca mais esteve lá depois de estar aqui, em mim. Não sei o que aconteceu. Só sei que entre eu e ela houve uma compreensão mútua e plenamente intocável. Ainda sento todas as noites sobre a cadeira branca. Apoio a mão esquerda sobre o beiral da sacada, e seguro um cigarro com a mão direita, a fim de suprir a falta que faz a presença dela a me segurar pela mão. Ainda quero experimentar o céu, mas não tenho coragem de encará-lo, porque é só o vento dela que dança pelos meus cabelos. Fico assim. Perplexo. Acendo dois cigarros. Um eu fumo. O outro deixo queimar. Olho para aquela janela. A janela dos olhos dela. E, assim, sem mais, sinto o peso da fumaça que sai da boca dela a me invadir o corpo.Olho mais uma vez. E adormeço com as mãos concha.

L.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Últimos 15 minutos de reticências

O outono está chegando, e as ventanias também. E eu sei desde sempre, que esses ventos sujam a casa que eu passo meses limpando. Dessa vez eu não vou arrumar nem limpar, vou largar meus pedaços por aí. Por favor, não repare na bagunça, pare de olhar pra trás e largue tudo como está. O carnaval acabou e com ele se foram as mágoas e as borboletas.

Por isso não tenha medo de admitir que o samba morreu, o disco riscou e nessa casa só sobraram cinzeiros cheios e copos vazios. Se antes eu me perdia na mentira, agora não me acho na verdade. Não me acho na minha, muito menos na sua.

Então é com grande pesar que te peço que guarde com carinho os momentos alienáveis com a estranha familiaridade na caixinha de coisas intransferíveis. Peço também, que em silêncio, apague a luz... tranque a porta e deixe a chave.
Agora vou dormir, ando judiada com essa vida de dona de casa.

S.