quinta-feira, 19 de abril de 2007

daquele livro perdido

E em cada página de todos esses meus livros você esteve, mesmo naqueles em que eu ainda não te conhecia. Você não chegou para mim, você nasceu em mim. Nasceu feito cacto ruim que fica na vida sete vezes verde, sete vezes velho, sete vezes diferente, mas nunca deixa de ser o mesmo. Forte e armador. Caçador de psícologia intíma, psícologia avançada. Ladrão de céus arranhados, de estrelas entupidas de brilho. Apanhador de latinhas de sangue vitaminadas de vida, não de morte. Não de medo.
Com você existe um sossego agitado.
Dar a mão para à vida nunca foi tão fácil com você do meu lado, nunca foi tão bom ter um cabelo loiro-enrolado-cheirando-trigo-novo no meu colo, sendo entrelaçados pelos meus dedos malandros, traiçoeiros e que nunca deixaram de ser carinhosos.
No nosso canudo guardo os dias em baixo do pé de laranja lima da nossa casa, cada conversa, cada poesia cantada que lá fazíamos, cada confição misteriosa e engraçada que ouviamos chorando de rir, entre sombras, frios e dias ensolarados. Cada cova do meu rosto foi formada junto dos dias em que brincávamos com a mangueira no quintal, nos dias em que o almoço era o jantar e o jantar era o café da manhã. Em cada noite de núpcias que passamos juntos dos filmes antigos, entre um sonho e outro. Ser sonhadores ou não. Eu me congelei por essas acelerações.
Transformando em mim por cada dia de grito para aparecer na janela, em cada buzinada de fusca lá fora, dos dedos cortados pelas tentativas de novos molhos com cebola e dos joelhos doendo pelas brigas no sofá.
Os quadros caíram, mas continuamos lá, sorrindo ao ver que a pasta de dente acabou, que a necessaire sente falta do batom, que ficamos sem energia fazendo a carne descongelar, mas a manteiga nunca chegava perto do fim.
E eu sempre lhe tive aqui, na mão, que depois ia para o bolso, e que de vez enquando doía ao se apertar de saudade, ao precisar de mais ouvidos, de mais olhares, de mais palavras ao vento como sempre jogavámos, só para que caíssem todas certinhas onde deveria cair. Cada beliscão roxo, cada cutucada e olhar de espinho me dava ódio por tudo ser tão verdadeiro. Tão dolorido. Tão dor, tão dor, tão dor, que já nem doía mais.
Fazendo, formando, desfazendo, deformando, mas continuando sempre, sempre com o mesmo ciclo do amargo e do doce. Se aproximando a tudo: À mim. À você. E ao mundo.
Arranharão seus discos, mas para apagá-los é preciso de muito mais que isso. É mais fácil o céu cair do que você não me ver sorrir. Porque quem me fez assim não fui eu mesma, foi por cada sobremesa que eu recebi nos dias sem água. Foi por cada resposta silenciosa que você me deu nos olhos. Foi por cada noite de estrelas que você me iluminou do mar e bebeu comigo tudo que era salgado vindo de meus olhos.
Nas manhãs de pão na mesa e até das noites que não lhe via, você estava na minha saliva, no meu sangue, no meu pensamento, e apertado no meu bolso como ninguém.

Hoje lembrei da tua voz sussurando em meus ouvidos “é, por mais que meu espírito destrutivo tente destruir o tamanho e a beleza da vida, a vida é grande e bela.”, só então vi limpidamente a vida que escorre como a areia de dunas.


C.

3 comentários:

Rebecca Loise disse...

!!

Thalita disse...

foi como ler algo que a tempo desejava engolir. boas palavras, bem usadas, anestesia pros olhos já falhos, e pra mente quase louca.

Anônimo disse...

lendo esse texto, foi como ver um filme....descrição lisérgica de emoçoes e sensações sauves e puras, uma fantasia , um delírio caótico.Dessa emoção pura e simples, surge um caleidocopio de sensações.alguem que viveu em outras eras escreveu isso...