terça-feira, 24 de abril de 2007

Meio-mel Meio-sangue

Hoje ao acordar, abri bem as janelas - as mesmas que você abria toda manhã-começo-de-tarde da nossa eternidade pura. Eram daquelas de madeira, do tipo que range inteira até te arder, fazendo os olhos fecharem forte de aflição involuntária. O sol invadiu todas as minhas frestas, todas as minhas dores, todos os meus medos. Mostrou-me bem devagarzinho o queimar do sentir. E eu sentia. Muito. Eu precisava daquilo. Eu precisava da luz me descobrindo em cada poro. Mas a luz, aquela, da manhã-começo-de-tade, deixou de ser luz no exato momento em que se fez luz. A procura é sempre o motivo desconcertante das coisas. Mas a angústia impenetrável está no achar, que em si já desmerece o ato de procurar. Alcançar o indubitável faz-me doer inteirinha, dói-me até mesmo naqueles pequenos e enfadonhos pedaços que nem eu mesma sei o que querem dizer mas que dizem tanta coisa, que eu me perco nos meus próprios versos sem métrica alguma.
Dentro de uma das minhas abstrações absurdas,passeei no nosso céu. Tão azul, tão fresco, que ainda cheirava à tinta fresca. Fechei os olhos mas continuei o vendo – daquele jeito - e tive a certeza de que se você estivesse aqui ao meu lado, teria comentado algo sobre a tela daquele pintor que você tanto gosta do qual eu não me recordo o nome agora.
Senti de longe o perfume do seu sorriso, ali, tão inteiro para mim. E querida, você bem sabe, a totalidade para mim é tão inventiva quanto à felicidade plena para os poetas. Tudo fazia parte de uma mistura que continha alecrim, lírios, margaridas e hortelã. Meus preferidos. O cheiro, as cores, os suspiros trouxeram de volta as sete borboletas – que já foram tão comuns algum dia - correndo com seus encantos nos cantos perdidos do meu âmago. Borboletas não - não mais. Mariposas. Porque a dor inexistente e demasiada efêmera nunca esteve tão negra e veloz ao mesmo tempo, dentro da minha tela cheia de ares franceses pintados por outras mãos.
Passei o dia todo sentada no beiral da janela, sentindo o vento varrer meus cabelos e limpar minha alma entreaberta. Passei o dia todo com a minha profundidade perdida se afogando em um mar de sal que me ardia mais do que qualquer outra coisa. Fumei um maço inteiro daquele cigarro barato que eu odeio, mas que você esqueceu sobre a estante naquela última noite em que tudo se deu em um desfecho ácido, e quase imensurável. Cheirei todas as carreiras que pude só por saber que você não ia aprovar, como se isso fosse me tornar grande diante de você – diante de tudo - e eu me enchesse de uma grandeza vaga, que na verdade só me fez mergulhar num fundo-sem-fundo. Fiquei parada ao lado do telefone, ao lado da porta de entrada, ao lado de todas as coisas que podiam de alguma forma me levar para o meu outro lado, para fora de algo que na verdade era só meu, mas tudo o que se ouvia no meu apartamento vazio, era aquele velho disco do Dylan tocando re-pe-ti-da-men-te – Its a price I have to pay You’re a big girl all the way - na vitrola velha. Escrevi milhares de poesias desesperadas e depois botei fogo. Fiquei trocando olhares pudicos com a fumaça fina de todo o meu mais profundo individualismo, até que meus olhos se cansassem desse anestésico ingerido em doses homeopáticas – o tempo. Olhei o mesmo sol da manhã-começo-de-tarde desaparecer pedaço por pedaço no horizonte, e vi meus olhos transparentes escurecerem - lentos e breves - junto com todo o resto daquilo tudo que eu era. Daquilo tudo que eu ainda sou.
Na corda bamba, entre risos nervosos e mentiras entrelaçadas, fiz meu café. Bem forte. Quase amargo. Com muito açúcar. Deitei-me na cama - antes nossa – beirando a languidez e fiquei lá envolta por pensamentos insossos, perplexa, vendo de longe as nossas memórias enquadradas e todas aquelas pequenas epifanias.
Mais tarde, beijei a vida na boca, sentindo gota por gota da sua saliva abrasiva que sem nem perceber, tirou-me de mim mesma. Quebrada pelo instante - tão doce - em que seu olhar tombou-se sobre mim com aroma de quase-amor.

Na manhã seguinte, acordei com aquele gosto de meio-mel meio-sangue na boca. Sem saber se era pelo querer do doce, ou pelo prazer alcançado somente pelo incompreensível.


L.

4 comentários:

Unknown disse...

Fumei três cigarros de uma vez só, como rebeldia, acendendo um com a ponta do outro. Olhando a lua e julgando-a mais fraca do que eu; Porque a luz é inútil à força da indiferença.

Há frases que já valem o texto, e a sua surgiu aqui:
"A procura é sempre o motivo desconcertante das coisas."

Anônimo disse...

comportar-se dentro do escuro, eu sei que sabes!

Rebecca Loise disse...

Antes de ler o sublinhado de Marina, enxerguei a importância da frase: 'A procura é sempre o motivo desconcertante das coisas'!
Bonito o texto, L.!

Duda Bandit disse...

que texto delicioso, a gente saboreia cada palavra... as dores de amor são temperos sublimes para a literatura...