quinta-feira, 5 de abril de 2007

Desconserto em palavras.

A brisa do outono caia como luvas em cada traço marcante dos caminhos que vazia aquele corpo de menina moça. Abriu a janela pra sacada, e ficou ali por quase uma hora, analisando o poder da manhã de domingo. Analisando como as ruas eram pouco movimentadas nesse horário, nesse dia. Por pouco não escutava o grito sonolento de cada folha que despencava levemente das árvores, que pelo vento fraco da manhã fazia com que elas flutuassem mais ainda, naquele ar de areia marinha que não existia ali. Alguns passos apressados, alguns cachorros abandonados.
O sol brilhava feito aquele ultimo dia de amor em setembro, queimando por de baixo daquela pele fresca, cheirando sorvete de uva ao creme. Irradiando a face até que os olhos se apertassem e ficassem completamente pequenos, formando diversas caretas amargas. O céu transbordava dezenas de azuis escaldantes, e do lado direito às pintas da bochecha se confundiam com as últimas estrelas avistadas no céu. No céu de ontem.
Ela conquistava cada dó menor, cada fá sustenido e cada lá com sol, que vinha junto daquela canção antiga, dos tempos de cabelo comprido, dos tempos em que viver era só sonhar, daquele carro barulhento, cheio de fumaça de cigarro. Devia ser no vinte e quatro ou vinte e cinco que o volume abafava o som enfraquecido daquele solo de guitarra da música No Rain.
Lá de cima ela também avistava o vago da cidade, onde os lugares ainda eram cobertos daquele cimento verde, onde o orvalho cai todas as noites e molha. Onde antigamente ela colocava a toalha colorida para ficar dando nomes a estrelas que ela nem mesma conhecia, fumando um cigarro fraco e mergulhando em fantasias pré-históricas. Cheias de sabores freneticamente lambidos por sensações anestesiadas pela vontade de se afogar em um mar salgadamente doce. Até o dia nascer, até o sono bater. Sem ou com moletom, naquele cimento de antigamente, onde agora quase não tem espaços verdes, muitos menos verde-musgo.
Sentia saudade de lá enquanto o vento e o tempo passavam, como tem passado os anos, despercebidos. Rápidos demais. Com "para sempres" excessivos e sem sabores.
Fechou os olhos, bateu os pés, e quando abriu foi logo despistando o olhar daqueles pássaros que voavam para o país das maravilhas, longe daqui. Longe daí. Longe de mim. Longe de tudo. E principalmente dela.
Desceu as escadas e no jardim foi procurar flores que morriam e que nasciam por causa da estação. Borboletas circulavam entre suas cores fortes, e em uma dança típica de outono. O tempo foi passando despercebido outra vez. Encantando não só a ela, mais as pessoas que passavam na rua, e com olhos longos enxergavam cada passo flutuante que ela girava, naquela ciranda imaginaria, naquela corda-bamba invisível, em cada piscar demorado mexendo os cabelos cacheados de mel, envolvidos por fel. E entre a sombra e o amarelo brilhante, ela gritava um silêncio entorpecente de palavras cheio de enigmas lunáticos, como se resolvesse jogos de xadrez sem nem pensar. Ela flutuava com os pés no chão, mas como pipas longes, e coloridas de prazer pelo vento mais fresco e limpo de lá. Lá de cima. Lá do céu. Lá das nuvens mais altas. E do sol. E da lua. E da onde quer que fosse o pico mais alto o sorriso dela encaixava com cada centímetro de vida que eu ouvia a aurora nos dias de inverno, mesmo que o gosto fosse o outono.

Aquela bailarina com o doce de pele adocicando o ar, com as cores tóxicas do amor, do sabor, do prazer. Anestesiada de vida.

- Viver é não saber não rir.


C.

2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Unknown disse...

Me inspirou a falar sobre o desconserto tb. Todo mundo deveria se desconsertar!