quarta-feira, 18 de abril de 2007

saliva molhada de amor

O telefone toca e eu finjo não escutar, olho para o relógio naquela minha escrivaninha velha percebo como tudo tem passado rápido. Voando. Os raios do sol já invadiram meu quarto, já refletiram no espelho, nas paredes brancas. Na parede verde minhas fotos brilhavam e entortavam com o vento leve que vinha da janela que esqueci aberta. Lembrei do frio que fez durante a madrugada, das poucas vezes que acordei e olhei desacordada aquele céu bordado de estrelas que ganhei de presente da noite. Meus olhos piscaram devagar outra vez.
O telefone continuava soando lá da sala, e eu aqui, olhando para o porta-retrato atrás da porta, e as roupas esparramadas ao chão. Olhei para o lado e ela continuava ali intacta, parecia sonhar que estava em outra galáxia. Nem se eu passasse minhas mãos leves por aquele corpo, por aquele rosto, naquela pele branca e macia, nem se eu olhasse até doer os olhos, nem se os sinos do mundo parassem de tocar, de soar, de transbordar nas nossas orelhas frias. Nem se o sol iluminasse três vezes mais, e as manhãs de julho fizessem mais frio. Nem com a força de todas as estrelas. Nem com a força de nenhum desejo eu entraria naquele sonho lúcido que ela sonhava.
Transbordava, transbordava, transbordava. E o telefone tocava, pensei nas escovas de dentes que ainda não estava juntas. Lembrei no troco que esqueci de pegar enquanto estava bêbada, senti à dor de cabeça, senti o gosto da cerveja. Olhei para o lado, senti o beijo. Minhas costas doíam, minhas mãos dormiam.
Levantei devagar para não acordar o resto de mim que ainda dormia. Me olhei no espelho, mexi nos meus cabelos que com os raios de sol pareciam mais claros. E o telefone não parava de tocar enquanto eu procurava um cigarro perdido naquele monte de roupas fedidas de fumaça, aquelas roupas que ontem a noite foram tiradas na euforia. No tesão. No desejo. No coração palpitando. No sorriso disfarçado. No olhar cheio de flores. Lembrei dos dedos se tocando como se todo o mundo parasse. Como se o mundo girasse em forma de ciranda, uma ciranda cantada, enfeitada, e sonoramente cheia de gostos. Cheia de curvas. Cheio de fundo.
Achei o cigarro bem do lado do relógio que não cansava de marcar oito e trinta e dois, coloquei-o na boca, procurei um CD. Um ritmo calmo e solto soava em meus ouvidos na tentativa de pensar em qual CD escolher. Coloquei O Três, e com o dedilhado, com os agudos longos comecei meu dia, comecei a viver outro dia. Caminhei até a cozinha, e no caminho, em todos os cantos da casa fui abrindo as janelas. Fui soltando o ar abafado que eu tinha guardado só pra gente ontem. Doei para o mundo um pouquinho do nosso amor, um pouquinho da nossa busca. Um pouquinho da nossa loucura transformada em vida.
Mexi os lábios sem nem perceber, e enquanto preparava um café forte acendi o cigarro que ainda estava apagado em minha boca. I once fell in love with you eu cantava fechando os olhos, arrumando o pó esperando a água ferver. Olhando naquela janela suja, naquele vidro quase amarelo, as pessoas passando de carro, correndo. A cidade acordando. O trânsito nascendo. Engarrafando. Se afogando. Just because the sky turned from gray eu cantava coçando a cabeça enquanto abria a geladeira para pegar o queijo e os ovos, tirei a folhinha do calendário do mês passado, abanei a toalha da mesa, coloquei a água no pó de café e aquele cheiro maravilhoso-de-coisa-quente subiu em minhas narinas como água do mar, que engasga. Que engana. Que encanta. Into blue eu cantava olhando para aquele celeste céu azul, que até agora pouco era brilhante de estrelas, e agora só brilhava, só refletia a si mesmo. Que intercalava meus olhos confundindo minhas sensações. Eu me perdia no tempo enquanto cantava It was a good friday baixinho para não acordar meu coração que eu tinha perdido naquele lençol vermelho de ontem à noite. Que eu tinha perdido de tanto suar, de tanto gritar, de tanto dançar em passos curtos entre contrações de músculos, entre pernas frias e quentes. Entre braços fortes e dormentes. Entre desejos loucos e desejos ferventes.
O telefone voltou a tocar, enquanto isso eu preparava com gosto um café da manhã que nem eu entendia por que com tanta vontade eu fazia aquilo. Entre talheres e detalhes eu me perdi. Eu me afoguei até dar risada silênciosa. One day we'll meet cantava baixinho a outra música voltando para o quarto, olhei aquela beleza rara solta na minha cama, afundada no meio do meu lençol vermelho, fortificando meu olhar pelas cores fortes que aquele rosto pálido me é.
Comecei pelos pés, enquanto beijava-os cantava i watch you when you sleep querendo chegar logo no seu rosto. Ninguém acordava ninguém se mexia. Nem fora, nem dentro do nosso mundo. Eram só canções, eram só ondas sonoras que anestesiavam todo o momento, chocando, contemplando e abraçandoa tudo isso de uma maneira tão lilás quanto às flores que um dia joguei fora. Just to stop your eyes from falling donw tears repeti até chegar com os dedos em seu cabelo, meus olhos fechavam devagar como se fosse isso que modificasse o tempo. Como se fosse isso que atrasasse aquela bomba-relógio em cima da mesma escrivaninha, que agora mudara pra nove e sete.
Foi deslumbrante ver aqueles olhos nascendo para um novo dia, crescendo até franzir a testa, acompanhando um sorriso de bom dia até mostrar fortemente os pés-de-galinha do lado dos olhos. Beijei os olhos, as orelhas, a testa, o nariz. Mordi o queixo, limpei o rosto dos cabelos escuros cheios de nós. Em seis segundos contei as pintas, pisquei devagar, apertei as bochechas e selei nossa noite. Selei nosso encontro. Selei nossa vida. Sangrei nosso beijo.
You can leave me eu cantava servindo o café amargo, despedaçando nosso banquete sagrado. Nosso corpo doado. Nossas veias cortadas. On the corner eu cantava olhando nos olhos, lendo um silêncio de gritos, um silêncio de vícios. Uma coisa só nossa.
Where you found me eu cantava acendendo outro cigarro, soltando a fumaça para o alto, pensando nas luzes que os azulejos faziam, pensando no outono que acabava lá fora. Uma borboleta entrou roxiando minha cozinha, cheirando cereja velha, trazendo ruídos que rimavam com o bater até das minhas asas.
O céu bordado de estrelas ontem, o de hoje transbordando saliva molhada de amor, i'm not for sale anymore cantei fechando os olhos e acordando para mais um dia de fantasia até o telefone voltar à tocar.


C.

Um comentário:

Rebecca Loise disse...

devo ter sido uma janela que foi aberta pois daqui se sentiu as respirações rápidas que sabotaram a volúpia final!

lindo! e que noite-dia, C.!