segunda-feira, 28 de maio de 2007

Morrer não dói

Eu abaixei a cabeça para que ninguém me visse chorar. O ar de desespero era tão grande, tão negro que eu tive que fingir força, só para a luz clara e perdida que mantia o silêncio de morte não refletir em mim.
Minha mãe perdeu o olhar, e eu parada ali, olhando o dela, perdi também. Enquanto eu tentava abraçá-la acabávamos tremendo, tremendo e tremendo tanto, que escutei um trem vibrar no lugar do coração dela, pensei que ela fosse o trilho, mas ontem soube que o trilho sempre fui eu. Um trilho que não pode mudar nadinha, para que o caminho faça sentido e não termine em qualquer abismo.
Tomei quatro cafés quentes vendo ela fumar um maço inteiro de cigarros. Eu continuava abaixando a cabeça enquanto ela corria feito criança rodeando aquele caixão escuro, cheio de detalhes em dourado. Corria, olhava, falava, chorava feito criança - parecia minha filha - enquanto eu olhava a vela queimar ardendo os olhos, e ela se movimentava para frente e para trás, envolvida em algum balanço tranqüilo repetindo pequenas frases de alguma canção.
De repente como um aberto, ela me abraçou e disse bem baixinho na ponta do meu ouvido "Parece uma anestesia que não me deixa entender nada", e eu, me sentindo completamente fria, lembrei das borboletas do cazuza e sussurrei como se fosse vento na orelha dela "Morrer não dói, Mãe.". Vi aqueles olhos deslizarem devagar acompanhando a mão que apertava aquela outra mão roxa, gelada e morta da Dona Rosa.
Olhei-a dos pés a cabeça, toda encaixotada, brilhante de flores novas. Flores nuas de temor. Fui ao banheiro e quis fumar do mesmo cigarro que minha mãe - já que é pra morrer - pensei sozinha. Sentei na privada fechada e jurei querer ouvir aquela voz, aquela respiração e aquele arrastar de pés de novo, mas não pude querer muito, minha mãe continuava lá, na beira do caixão, só os olhos que se mexiam.
Dentro de seis horas que fiquei ali achei que ia enlouquecer junto das centenas de vezes que fui apertada em forma de abraço, ouvindo palavras tortas, perguntas mortas e medos novos. Os treze graus que faziam na madrugada, passavam retos como se eu nunca tivesse sentido nada. Tive ânsia várias vezes, e meus olhos pregavam com tanta força que lembrei de Jesus na cruz.

O maço dela acabou de novo, abaixei minha cabeça e não quis nunca mais chorar, pensei que a morte podia ser confortável e duvidei dela mesma até amanhecer, vendo aquelas velas queimarem, as pessoas sumirem, menos ela, minha mãe, que continuava paralisada, olhando para a vida, pensando na morte.
Fechei os olhos e senti uma cabeça se ajeitado no meu ombro esquerdo, meu nariz trancou na hora, meus dentes rangeram e meus ouvidos doeram com aquela voz lenta e doce me perguntando "E se eu morrer?" e entre um choro amargo, meio engasgado com o nó que crescia feito bexiga na minha garganta, respondi mais de sete vezes morrendo de medo - "Não sei.. Não sei.. Não sei.. Não sei.. Não sei.. Não sei.. Não sei..." até que minha cabeça encaixou em algum lugar da cabeça dela.


"O pó volta a terra como o era, o espírito volta a Deus que o deu." Eclesiastes 12;7


C.

Um comentário:

Anônimo disse...

e como borboletas que só vivem 24 horas, morrer não dói.